Você está em Artigos

Da Educação Inclusiva ao Planejamento Educacional Inclusivo: Exercícios de um Professor Autista em Formação

Autor: Iago Telles Márques del Negri
Data: 24/06/2022

1 REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS

Este artigo se origina de um paper que foi elaborado no âmbito do curso de licenciatura em Artes Visuais e tem como assunto a inclusão de pessoas com deficiência (PcD) na escola regular. O texto foi redigido em primeira pessoa do singular em conformidade com diretrizes metodológicas da autoetnografia, uma vez que o assunto proposto pelo curso também me afeta enquanto jovem autista. 

Entendida como "uma narrativa reflexiva que revela com densidade a presença do pesquisador no campo de pesquisa" (GUTIERREZ, 2010, p. 11), a metodologia autoetnográfica permite ao autor que faça uso de dados autobiográficos desde que estes sejam, de fato, pertinentes à discussão empreitada. Como além de me encontrar no espectro autista tenho discalculias, ao refletir sobre a escolarização da PcD não posso omitir o que também conheço de experiência própria.
Para o desenvolvimento do trabalho nos apresentaram dois excertos. No primeiro, Moraes (2017) observa que:

O Plano Nacional de Educação (PNE) 2014–2024 busca, predominantemente em sua Meta 4, universalizar o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação de preferência na rede regular de ensino. Os resultados da Meta revelaram, em diferentes faixas etárias, discrepâncias no acesso e na taxa de escolarização, de alfabetização e de analfabetismo entre a população com e sem deficiência. As diferenças observadas se acentuam na população com deficiência intelectual e motora. Tais dados corroboram a necessidade de reconstrução do modelo educativo escolar para a efetiva inclusão de pessoas com deficiência (MORAES, 2017, p. 6).

O Plano Nacional de Educação (PNE) é "um documento cuja finalidade é congregar informações necessárias à organização das políticas públicas na área de educação, no âmbito de um país com vistas a uma intervenção que transcenda as ações pontuais de curto prazo" (GIL, 2010, p.1). Como destacado por Moraes (2017), em relação à educação da Pessoa com Deficiência (PcD) intelectual e motora, não se pode dizer que a Meta 4 tenha sido atingida. O outro excerto disponibilizado explica que

A educação especial na perspectiva da inclusão concebe o espaço escolar como ambiente de realização de propostas à luz da igualdade, no qual todos têm assegurado o direito de aprender, considerando-se as especificidades dos sujeitos, projetando-se atendimentos adequados às necessidades motoras, visuais, linguísticas e cognitivas dos alunos matriculados na escola regular. (SOUSA, 2019, p. 16).

A partir do excerto temos claro que educação especial e educação inclusiva não se confundem, ainda que possam andar juntas. A educação especial é uma abordagem de ensino em que se procura desenvolver habilidades específicas em indivíduos que tenham algum tipo de dificuldade de aprendizagem, muitas vezes relacionada a uma deficiência; já a educação inclusiva consiste, ao mesmo tempo, em um processo educativo e um processo social, sendo, portanto, mais ampla que a primeira. 
 
Sousa (2019) destaca que a perspectiva da inclusão faz com que a educação especial leve em conta o respeito às diferenças na escola regular. Observando o cotidiano escolar de muitas crianças e jovens com deficiência, pondero que, quando uma escola finge que as diferenças não existem – ainda que o faça sob a alegação de que está evitando discriminação e/ou  "privilégios" – o que se produz é, além de desinformação, também desigualdade de oportunidades, afinal, pessoas diferentes precisam de apoios e de estímulos diferentes para conseguirem se desenvolver bem.

Depois de apresentar os dois excertos, no trabalho do qual resulta este artigo nos pediram para atendermos a algumas recomendações. Eis a primeira:

a) Com base no contexto escolar (você pode visitar uma escola para observar como acontece o atendimento aos alunos especiais), escreva sobre a relação entre o direito de aprender e a educação inclusiva.

Como passei mais de 15 anos buscando e de alguma maneira vivenciando esses atendimentos, em diferentes escolas, optei por incluir dados autobiográficos a respeito, considerando minha própria experiência e a de outros colegas com deficiências com os quais convivi no ambiente escolar.

Estudei em cinco escolas, todas particulares, de uma cidade de médio porte do Triângulo Mineiro. Em comum, vejo que em todas elas sofri bullying e vi outras pessoas em situação similar à minha enfrentando o mesmo problema.

Na primeira escola onde estudei, quando era muito pequeno e ainda não tinha um diagnóstico definido, eu ficava a tarde toda numa quadra de voley brincando na areia. Com o tempo eu nem entrava mais na sala de aula, pois as professoras diziam que minha agitação "atrapalhava os coleguinhas", então, quando fechavam o portão eu já era "liberado" para brincar na quadra juntamente com um colega com síndrome de down. Nessa escola, que era cheia de escadas, não havia rampas e nenhum atendimento especializado.

Na segunda escola, que era mais cara e muito bem conceituada na cidade, a família de um colega com uma síndrome genética rara relatou que tinha que pagar separado o salário de uma segunda professora para acompanhar o filho em sala de aula. Além disso, eles recorriam, no contraturno, aos serviços de um centro de atendimento psicopedagógico que também foi frequentado por mim, por indicação escolar, durante os anos em que estudei lá. Nessa escola eu fui reprovado duas vezes em matemática mesmo estando em acompanhamento psicopedagógico e tendo claros indícios de discalculia além de diagnóstico de DDAH.

No meu caso, o conteúdo, os recursos e materiais didáticos, as atividades e provas e os critérios avaliativos eram exatamente os mesmos dos demais alunos, sem necessidades pedagógicas específicas. Para eles, eu é que tinha que me adaptar à escola, e não a escola que tinha que adaptar algumas coisas para alunos como eu. Tratamento diferente era reservado aos meus colegas com síndromes genéticas (X frágil e Down), cujas  deficiências – visíveis – garantiam que tivessem acesso a todas as adaptações entendidas como necessárias. 

De forma não muito diferente, na terceira escola em que estudei também predominava o modelo da integração sob uma fachada de inclusão. O que era chamado de "inclusão escolar" não ia muito além de se reconhecer o direito da família matricular sua criança atípica. Quanto à permanência, nada era feito a respeito. Nessa instituição, exceto por iniciativa pessoal de uma professora de Matemática (não por orientação institucional), também não havia adaptação de material, avaliações e/ou critérios avaliativos, independente da existência de um diagnóstico.

Na quarta escola, que era mais simples em termos de instalações, eu tive alguns professores especiais e outros que careciam muito de uma formação que não se limitasse ao domínio do conteúdo. O professor de Matemática nem sabia que discalculia existia; outros, achavam que tudo o que remetesse à apresentação de um laudo era "oportunismo" e "invenção da indústria farmacêutica" - ainda que não se estivesse pedindo nada e que nem sempre o tal laudo tivesse relação com uso de alguma medicação.

Em certa ocasião, a coordenadora pedagógica dessa escola chamou minha família e indicou outra equipe, de confiança do colégio, recomendando reavaliação do meu diagnóstico de DDAH. Depois de semanas de testes (e novos gastos) com outros profissionais de neuropsicologia, neuropedagogia e neurologia, confirmou-se o diagnóstico de hiperatividade  acrescido de síndrome de Asperger (hoje substituída no DSM-V por autismo nível 1), e quatro tipos de discalculias. E, mais uma vez, houve desconfianças entre docentes, dessa vez motivada por forte ignorância sobre o tema, pela ideia, disseminada no senso comum, de que uma pessoa autista não pode falar bem, não pode gostar de contato físico e tão pouco olhar nos olhos.

Cumpre observar que essa escola, que era a mais simples em vários aspectos, mas tinha uma supervisão pedagógica sensível, foi justamente a que chegou um pouco mais perto de fazer uma educação inclusiva. Depois da reavaliação realizada a pedido, não havia outra coisa a ser feita senão adaptar os conteúdos matemáticos (tanto da disciplina de Matemática quanto de outras disciplinas) – ainda que o regente da matéria continuasse convicto em suas crenças pessoais na contramão da evidência científica.

Como lá só tinha até o fundamental, mudei novamente de escola para cursar o ensino médio. Fui matriculado em uma das escolas mais modernas e conceituadas da cidade, que oferecia o ensino em período integral, com horários para aulas de reforço, pra assistir filmes e debater, para estudo de línguas, para tarefas, e também para atendimento com equipe de TO e psicopedagogia. No meu caso, além dessas atividades, havia ainda horário reservado para  aulas de educação matemática.

No começo tudo corria relativamente bem, contudo, não demorou para que o bullying recomeçasse quando colegas se deram conta de que meu material de matemática era o mesmo das crianças do fundamental I, com linguagem e ilustrações infantis. Tornei-me a piada da turma e não reagi bem a isso. Depois veio a pandemia e algumas dificuldades de comunicação se intensificaram, o que, somado a uma mudança na supervisão, me deixou isolado por completa falta de mediação pedagógica. O que para o supervisor anterior, atento às discussões sobre neurodiversidade, era uma demanda legítima de adaptação e apoio, para sua substituta passou a ser visto como algo semelhante a um problema ou desvio a ser corrigido. Mais uma vez, foi o apoio e a dedicação de alguns professores - e não iniciativas institucionais - que permitiram o meu desenvolvimento escolar.

Para não restringir a reflexão às minhas vivências pessoais e a determinadas escolas da rede particular (que, ainda que submetidas a uma legislação, não seguem procedimentos uniformes), busquei material sobre como se daria a inclusão escolar na rede estadual de Minas Gerais.

Pereira (2021) explica que, quando chega um aluno com deficiência em qualquer escola pública do estado mineiro, uma equipe deve se reunir para estudar o caso e elaborar um documento chamado Plano de Desenvolvimento Individual (PDI). Esse documento servirá para acompanhar tanto a aprendizagem quanto o desenvolvimento social e emocional do estudante, o que permitirá embasar a decisão de solicitar ou não a presença de um segundo profissional na sala de aula, além do professor regente.
Ainda que a autora entenda que, na prática, isso nem sempre funciona bem (sua tese é que muitas vezes o profissional de apoio não era necessário, então sua presença acaba mais atrapalhando do que ajudando), considerando a existência de um protocolo a ser cumprido, opino que, no estado em questão, as escolas particulares da educação básica têm muito o que aprender com as escolas públicas em relação à inclusão da PcD.
  Próxima
Como referenciar: "Da Educação Inclusiva ao Planejamento Educacional Inclusivo: Exercícios de um Professor Autista em Formação" em Só Pedagogia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2024. Consultado em 13/12/2024 às 08:17. Disponível na Internet em http://www.pedagogia.com.br/artigos/educacao_inclusiva_planejamento/