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Era uma vez a questão racial: os livros de Literatura no processo de construção de identidades (página 2)

1 ERA UMA VEZ...

Os livros selecionados abaixo foram experimentados por diversas etapas da Educação Básica. Todas as experiências que me foram relatadas usavam o livro como instrumento para ajudar os alunos a construírem sua identidade histórica, estética e cultural, tendo o livro como base para uma leitura seguida de atividades, projetos e trabalhos contínuos de valorização racial ou somente para uma leitura sem compromisso político e cultural com o tema. Os exemplos abaixo são para nos inspirar a pensar sobre as questões que podemos levar aos nossos alunos para além da história que vão ouvir.

1.1 Menina bonita do laço de fita (Ana Maria Machado- 2011)
 

Era uma vez uma menina linda, linda, os olhos dela pareciam duas azeitonas pretas, daquelas bem brilhantes. Os cabelos eram enroladinhos e bem negro feito fiapos da noite. A pele era escura e lustrosa que nem o pelo da pantera negra. Sua mãe gostava de fazer trancinhas em seus cabelos.

Ela ficava parecendo uma princesa das terras da África, ou uma fada do Reino do luar. Do lado da casa dela morava um coelho branco, que achava a menina a pessoa mais linda e por isso queria descobrir o segredo pra ser tão pretinha. A menina não sabia e por isso inventava sempre uma história.

O coelho muito insistente perguntou pela penúltima vez: menina bonita do laço de fita qual o seu segredo para ser tão pretinha? A menina não sabia, mas inventou... "Ah, deve ser porque eu comi muita jabuticaba, quando era pequenina."

"O coelho saiu dali e se empanturrou de jabuticaba até ficar pesadão, sem conseguir sair do lugar" Por isso, daí alguns dias ele voltou lá na casa da menina e perguntou outra vez: A menina não sabia e já ia inventando outra coisa, uma história de feijoada quando a mãe respondeu: - Artes de uma avó preta que ela tinha... O coelho viu que a mãe da menina devia estar mesmo dizendo a verdade porque a gente se parece mesmo é com os pais, os tios, os avós e até com parentes tortos.

E se ele queria ter uma filha pretinha e linda que nem a menina tinha que procurar uma coelha preta para casar. O coelho não perdeu tempo e foi logo casando com uma coelha preta, que tiveram muitos filhotes de todas as cores. E quando a coelha sai na rua e alguém pergunta o seu segredo para ser tão pretinha ela responde: - Conselhos da minha madrinha.

Menina bonita do laço de fita um livro que nos traz muitos questionamentos.  Os professores gostam de trabalhar com esse livro por trazer uma linguagem clara e ilustrações bastante ricas tanto para Educação Infantil quanto para as primeiras séries iniciais.

Esse livro é usado como forma de apresentar às crianças a valorização da cor da pele e essa afirmação surge com o meu trabalho no PROALE e os vários relatos sobre o livro tão requisitado e em geral as crianças gostam muito da história, mas precisamos ponderar que algumas crianças poderão sentir-se desconfortáveis ao falar sobre si e suas origens e haverá crianças que não se reconhecerão nessa história por uma negação histórica sobre os negros.

 Percebemos que essa história se assemelha a de muitas crianças que não passaram por um processo de construção de identidade, pois as respostas dadas pela menina sobre a sua cor, lembram o racismo que muitas crianças sofrem para justificar a sua cor negando cada vez mais a suas origens. Ainda que a menina não seja discriminada pelo coelho, que por sinal a admirava muito esta não conhecia sua origem e dava desculpas para ser tão pretinha.

Acredito que o livro traz muitos pontos de partida a serem levados em conta e um deles é a importância de se trabalhar desde cedo aquela famosa atividade da árvore genealógica, traçando uma grande linha do tempo sobre o nossas origens, mostrando fotos às crianças de seus antepassados como forma de resgatar uma memória coletiva, carregada de significado sobre quem somos, ou seja, tal atividade vai além do livro, estimulando as crianças a tornarem-se pesquisadoras de si mesmas.

Assim como no livro em que a mãe traz o sentindo da ancestralidade trazendo o exemplo da avó. De acordo com Martins (2011, p. 17) "Nós nos reconhecemos e nos reconstruímos na relação com o outro. O caráter relacional da identidade é o eixo que conduz nossos sentimentos, pensamentos e ações".

O livro apresenta uma forma de explicar como é a organização social da família, e trazer essas questões para sala é trabalhar com Quem é a sua família? Se ela não segue os moldes tradicionais, ela pode ser considerada menos válida?

São perguntas que devem sugerir aos alunos o respeito com outro não deixando o preconceito imperar, como por exemplo, sobre a formação familiar homoafetiva, as mães e pais solteiros, aos divorciados, que hoje no século XXI enfrentam intolerâncias e violências.

Outro ponto do livro para pensarmos é a descrição que a autora faz sobre o cuidado da mãe negra com a menina ao cuidar dos seus cabelos, transformando em uma rainha da África, ter essa explanação é afirmar para as nossas crianças que seus cabelos são lindos, seja ele crespo, cacheados, Black, trançado, enfim a beleza negra também é beleza e quando o coelho na sua saga por se tornar negro, acaba afirmando que a beleza também é invejada.

Valorizar a negritude a partir da literatura infantil é levar possibilidades das crianças se reconhecerem em outros referenciais. Tantos pontos de partida e tantas chegadas, a literatura nos permite trabalhar os muitos caminhos que o livro traz e, Menina bonita do laço de fita é um exemplo disso.
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Como referenciar: "Era uma vez a questão racial: os livros de Literatura no processo de construção de identidades" em Só Pedagogia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2024. Consultado em 20/04/2024 às 02:53. Disponível na Internet em http://www.pedagogia.com.br/artigos/etnicoracial/index.php?pagina=1