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Era uma vez a questão racial: os livros de Literatura no processo de construção de identidades (página 6)


1.5 Peppa (Silvana Rando-2009)


História de uma menina que tinha cabelo no qual podemos chamar de crespo ou cacheado, um cabelo resistente e forte, tão forte que era capaz de coisas incríveis. Até a página 10, Peppa se mostrava muito feliz com os eu cabelo, mas um belo dia Peppa andava pela rua quando avistou um salão de beleza, na frente do salão havia um cartaz que deixou Peppa muito intrigada.

Peppa mal podia dormir pensando como ficaria de cabelo lisinho e macio. Então Peppa resolveu pegar suas economias e ficar com o seu cabelo macio e lisinho, foram dezesseis horas quarenta e oito minutos até que Peppa pudesse ficar com o seu cabelo incrível!! Mas ao sair do salão Peppa tinha uma lista de proibições. Peppa parecia tão triste, tudo era tão chato até que chegou o verão e Peppa estava muito irritada, pois o calor que começava lá no dedão dos pés e subia até as orelhas. Peppa foi ficando cada vez mais vermelha mais nervosa e insuportável e então não aguentando tanto calor Peppa se jogou na piscina e TCHIBUMMMM!!! E lá se foi o cabelão liso e sedoso de Peppa.

Apesar da história não definir a cor da personagem, Peppa tem o cabelo do qual podemos caracterizar como cacheado ou crespo. O livro traz uma perspectiva pejorativa sobre o cabelo da personagem no qual a leva fazer coisas que uma criança na verdade não conseguiria fazer. Quem conseguiria puxar uma geladeira com o cabelo?

Aparentemente com as ilustrações Peppa se mostra muito feliz com o seu cabelo forte. Mas percebemos o tom pejorativo sobre o cabelo da personagem, que faz simulações de que o cabelo de Peppa é tão duro que não consegue ser cortado com uma tesoura normal e precisa de um alicate para fazer o trabalho. As alusões que são apresentadas neste livro podem causar nas crianças um sentimento negativo sobre si mesmas, dizendo que seu cabelo é duro, que seu cabelo é difícil de tratar, que seu cabelo é ruim.

Quando Peppa se depara no salão de beleza com a foto de uma mulher, deseja ser como ela. Percebemos que o processo identitário ainda é muito confuso para muitas crianças, pois esse se dá nos conflitos entre o eu e outro. Vemos que a propaganda de uma mulher de pele clara, com cabelos lisos, representa um ideal de beleza, como se nossas crianças devessem negar suas características e procurar um salão de beleza capaz de fazer esse trabalho árduo.

Percorremos o livro e encontramos um salão que não está acostumado com a sua beleza e seu cabelo afro, tratando o cabelo da personagem com objetos de marcenaria, a ilustração deixa claro como a cabelereira fica exausta com dedos machucados, por ter cuidado dos cabelos de Peppa. A desvalorização é tão real que o pente, a escova quebram e precisa de um alicate, uma furadeira com lixa, materiais que de fato não encontramos nos salões de beleza, reforçando a ideia do cabelo "duro", "difícil", não é o que o que dita à moda.

O olhar espantado de todos "como se dissesse que cabelo é esse" revela o racismo velado, que crianças passam no seu dia a dia.  Segundo os olhos dos outros agora sim o cabelo de Peppa estava Incrível. A questão do cabelo e da estética são pontos importantes para qualquer pessoa e não seria diferente para as crianças que acabam por ficarem reféns de estereótipos e padrões estéticos a serem conquistados artificialmente.

Esse livro me faz lembrar às vezes em que neguei o meu cabelo, por achar que se eu alisasse o cabelo ficaria mais bonito e seria aceita. Entender que a beleza está em cada um, do jeito que somos, faz parte de um processo longo de aceitação e qualquer alteração estética que queira mudar a nossa essência de forma violenta deve ser revista.

Segundo a ilustração Peppa sai com um sorriso, que não dura muito tempo, pois, Peppa sai com uma lista de proibições que a restringe a ser criança. Qual o preço que nossas crianças precisam pagar para ter a beleza considerada legítima? O que elas estão deixando de fazer, quando impomos o preço da beleza?

Entre os pontos mais reflexivos do livro destaco as páginas 16 e 17 em que Peppa deixa de ser criança. Muitas vezes obrigamos as crianças e a nós mesmos a procedimentos permanentes que nos custa um preço caro que nos faz negar a nós mesmos. Peppa começa a ver o mundo de outro jeito, era muito chato ficar sem fazer nada devido seu cabelo.

Que preço uma criança tem que pagar para ficar linda segundo os padrões dominantes? Peppa volta a ser feliz ao retornar ao retomar a liberdade, sem restrições para brincar, sonhar e ser.

Os livros nos trazem reflexões importantes para ser trabalhado com as crianças e para a nossa própria formação, a começar por um debate sobre a nossa própria beleza de forma a valorizá-la com livros que realmente tragam elementos de respeito e valorização da diversidade. Levar um livro com segmento étnico não garante que o reconhecimento e a diversidade sejam trabalhados.

É importante explorar cada livro ou história contada, levando os alunos a criarem seus próprios roteiros, é interessante que toda a comunidade escolar esteja envolvida para potencializar as atividades que serão previstas, para que não se torne só mais uma atividade que usou o livro como suporte metodológico.

Diante das explanações em torno dos livros infantis feito acima, percebemos que o livro quando bem escolhido pode ser um aliado para aproximar as crianças dos problemas e conflitos existentes da vida, lidar com essas situações exigem um nível de amadurecimento que começa desde pequeno e perpassam os anos.

Uma ajuda importante para as crianças na hora de adquirir essa compreensão pode ser vista na literatura, pois a fantasia facilita a compreensão das crianças. Conforme Silva (2010, p. 47)
o papel da escola na escolha dos livros utilizados nas séries iniciais é fundamental. É responsabilidade da escola estar atenta para a escolha do acervo de sua biblioteca, devendo optar por livros que contribuam para a formação de uma identidade positiva do negro e, simultaneamente, proporcionar aos alunos não negros o contato com a diversidade e as especificidades da cultura africana, deixando, assim, para trás, uma visão estereotipada e preconceituosa das idiossincrasias dos referenciais afrodescendentes.
Assim conclui-se que pensar em propostas pedagógicas com uso do livro é pensar em um trabalho literário que contemple a diversidade, que ofereça oportunidades para os pequenos leitores, no sentido de ampliar o conhecimento sobre si e sobre o outro, numa perspectiva que conhecer seja aprender a respeitar a diversidade que nos constitui.

Cada livro em si, já traz diversas formas de como se abordar a questão racial, mas a forma como o trabalho será conduzido dependerá de uma consciência política dos professores e da consciência sobre o processo histórico e cultural de como o negro tem sido entendido e tratado.

Referências

BRASIL. Resolução CNE/CP n. 01/2004. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira africana. Brasília, 2004. http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf. Acesso em: 07 mar. 2016.
COELHO, Ronaldo Simões. Joãzinho e Maria/ Adaptação: Ronaldo Simões Coelho e Cristina Agostinho; Walter Lara, Ilustrações. -Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013. 16p: il.
DIOUF, A. Sylviane. As tranças de Bintou. Tradução Charles Cosac. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
DREGUER, Ricardo. Bia na África. Ilustrações Avelino Guedes/ Rogério Borges; - São Paulo: Moderna, 2007. – (viagens de Bia).
MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita. São Paulo. Ed. Ática, 2011.
MARIOSA, G. S; REIS, M. da G. dos. A influência da literatura infantil afro-brasileira na construção das identidades das crianças. Estação Literária. Londrina, Vagão-volume 8 parte A, dez. p. 42-53, 2011.
RANDO, Silvana. PEPPA. São Paulo: Brinque-Book, 2009 il. Color.
SILVA, Jerusa Paulino da. A construção da identidade da criança negra: a literatura afro como possibilidade reflexiva. 2010. 78 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Curso de Pedagogia) - Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de Fora.
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil. Porto Alegre/RS, ano 30, n. 3 (63), set./dez. 2007, p. 489-506.

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Como referenciar: "Era uma vez a questão racial: os livros de Literatura no processo de construção de identidades" em Só Pedagogia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2024. Consultado em 20/05/2024 às 16:53. Disponível na Internet em http://www.pedagogia.com.br/artigos/etnicoracial/index.php?pagina=5