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Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore (página 2)

    

E na busca por uma compreensão que problematizasse uma possibilidade de entrecruzamento entre literatura e folclore, bem como suas relações com a língua e a linguagem, que me propus, neste texto introdutório, a uma possível aproximação dialógica com o pensamento do sociológico e educador Florestan Fernandes no que concerne ao estudo do folclore infantil, buscando sempre uma interface com a literatura, principalmente a literatura oral.  Havia o interesse de saber a princípio além das convergências encontradas entre as temáticas já citadas, o desejo também de refletir e aprender com Florestan Fernandes sobre uma determinada metodologia de pesquisa, um fazer pesquisa com pequenos grupos sociais, com os grupos infantis, sobretudo.

E dialogando com os escritos de Florestan, a primeira questão sobre a qual me debrucei dizia respeito ao lugar do folclore nas escolas, nas salas de aula e nos textos. Pensando aqui o texto para além do registro, texto em sentido amplo, designando toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano. (FÁVERO & KOCK, 1983, p. 25).

Se nos perguntarmos por qual porta tem entrado o folclore nas escolas brasileiras, poderíamos ousar responder que até hoje, nesse século XXI, certamente ainda não seria pela porta da frente. Talvez entre até pela fresta de uma janela, aqui e acolá nas subversões feitas às normas curriculares. O folclore como tema de relevância cultural e social é tratado ainda de forma insipiente nas reuniões e mesas de debates entre os educadores e na mesma proporção ou desproporção, nas tentativas e possibilidades de problematização dos processos que o fundamentam e dos elementos que o constituem, o folclore que é hoje também parte da cultura contemporânea ou ainda como fruto da cultura de todos os tempos. Como o conhecemos, ou melhor, como o significamos a partir de um mesmo solo já gasto, o folclore seria a manifestação ou expressão das tradições populares, passada de geração em geração.  Requentada, reduzida e às vezes pré-conceituosa definição presente nos livros didáticos.  E parte dessa representação parece até ter saído da fonte das falas de  Emília, quando, por exemplo, a boneca de pano de Monteiro Lobato (1957, p.30) refere-se às Histórias de Tia Nastácia:

Pois cá comigo - disse Emília - só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto!

Sabemos que, por sua especificidade social e cultural constitutiva, a temática do folclore mereceria, sem dúvida, maior atenção e envolvimento dos educadores com um fazer pesquisa na e com a escola que, unindo teoria e prática, desvelasse a multivalência desse tema para a compreensão daquilo que passou a se chamar comumente de "bagagem cultural" do aluno, e no caso específico deste texto, da criança.

Entretanto, mesmo com todo reconhecimento atual do folclore como temática de pesquisa de fundamental importância para compreensão do que é a cultura popular provinda da arte e do trabalho do povo,  bastariam poucas incursões em escolas públicas ou mesmo particulares em datas alternadas durante o ano letivo para nos certificarmos de que a concepção de folclore, na maioria das vezes, ainda se restringe ao calendário das efemérides, ora com tratamento ilustrativo ou figurativo, como mais uma data do calendário escolar, ora como tema interdisciplinar,  mas ainda visto como "obrigação curricular", o que se configurou e se estendeu, a partir do discurso "politicamente correto" retirado dos Parâmetros Curriculares Nacionais, onde o folclore aparece inserido no tema transversal "Pluralidade Cultural".  Para exemplificar essas afirmações, citarei parte de uma observação feita numa escola pública da rede estadual do Rio de janeiro durante um "sábado letivo" destinado à comemoração do dia do folclore:

Agosto: "festa do folclore". Estamos numa escola pública de grande porte.  No pátio maior da escola, que fica na parte externa, há muitas barracas formando fileiras organizadas por cores, lembrando uma feira livre. As barracas têm nomes de acordo com as turmas e a seqüência se inicia pelas turmas de 3º e 2º anos  com "o folclore no mundo", perfilando-se em barracas árabes, portuguesas e italianas. Nessas barracas são vendidas rifas, salgados, doces e refrigerante e os alunos improvisam vestimentas que caracterizariam os países homenageados.  As turmas de 1º ano fecham a última fileira de barracas, vendendo o que seria a "comida típica brasileira": cuscuz branco, cachorro-quente, hambúrgueres e outros. São muitas barracas, pois há mais turmas de 1º ano. Não há nenhum painel nem qualquer tipo de artesanato nas barracas do ensino médio. No segundo pátio, que faz parte do prédio da escola, há uma concentração de cartazes nas paredes, neles encontramos o registro de lendas e personagens, como o curupira, o boto cor-de-rosa, o boi-ta-tá,  a iara etc. Há também no mesmo pátio mesas com maquetes sobre "os índios brasileiros" -  como está escrito no cartaz de entrada. Os trabalhos são das turmas de 5ª a 8ª.  No terceiro e menor pátio, também dentro da escola, estão os trabalhos das turmas de 1ª a 4ª. Neste espaço muitas pipas enfeitando as paredes, mesas decoradas com peças de artesanato em papel reciclado, argila e vários outros materiais. Os alunos estão vestidos com roupas que lembram as usadas no maracatu pernambucano. Eles usam chapéus e fitas nas roupas.
No final da tarde houve uma apresentação dos alunos de 1ª a 4ª: o folguedo do bumba-meu-boi foi encenado num pequeno tablado erguido no centro do pátio maior da escola. As professoras disseram ter trabalhado com livros infantis para motivar as crianças que, segundo elas, desconheciam o folguedo e seus significados. Os livros nos ajudaram na hora de explicar o porquê da festa. Eles ficaram mais animados pras brincadeiras e também pra confeccionar os bois durantes as aulas. Disse uma das professoras. Eu gostei foi de fazer o boi e de saber que ele ia morrer pra depois viver de novo, que nem Jesus.A professora foi que disse. Por isso que eu quis me vestir dele (o boi). Mas eu pareço mais é com o boi que eu sou preto. Fala da criança-brincante que vestiu o boi estrela.  

Partindo dessa "observação" como exemplo, injusto seria negar certa contribuição do discurso promovido pelos parâmetros curriculares nacionais, mas ainda assim se faz necessário lançar um olhar mais atento e crítico ao "uso" do folclore nas escolas, ou ainda ao seu "mau uso" ou ao seu "não uso disfarçado de uso". Pois a fragmentação que decorre das práticas discursivas se reflete diretamente nas práticas escolares, essas que muitas vezes não condizem com a própria teoria anunciada nos parâmetros. E torna-se ainda mais grave quando se privilegia uma teoria fragmentada, desvinculada ou mesmo apartada da prática, num arremedo de imperativos prescritos em textos fechados, centralizadores e aplicados de forma verticalizada, como se nesse baixo estivessem os educadores e os educandos.

Dito isto, no que diz respeito ao âmbito escolar e à cultura infantil, poderíamos num olhar aligeirado e um tanto generalista, dimensionar o folclore a um campo inesgotável de manifestações banalizadas e mal traduzidas em quinquilharias feitas de macarrão colorido, fitilho e papel crepom em cartazes pendurados indiscriminadamente nos murais ou corredores das escolas brasileiras ou ainda em apresentações performáticas que ao buscar uma certa verossimilhança com o "folclore antigo" ficam longe, mas muito longe do que seria a "cultura de folk", a que se reinventa com matizes outras pelas novas práticas culturais. Criam-se assim questionamentos importantes. É preciso tomar distância para expressar o que fala próximo a uma cultura que ainda se faz presente em muitas das brincadeiras infantis? Ou o folclore se diluiu tanto nos elementos culturais, sobretudo nos urbanos, que já não se torna possível o diálogo entre o que é da cultura de massa e o que é da cultura tradicional?

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Como referenciar: "Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore" em Só Pedagogia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2024. Consultado em 29/04/2024 às 09:51. Disponível na Internet em http://www.pedagogia.com.br/artigos/poeticadalinguagem/index.php?pagina=1