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Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore (página 3)


O folclore pode até correr o risco de tornar-se um lugar distante num passado longínquo sem conexão com o presente e o brincar das crianças. Mas se da própria voz infantil surge uma fala como esta: eu pareço mais é com o boi que eu sou preto , podemos  compreender que o folclore não está somente na "busca por um tempo perdido", ele reinventado está nas expressões culturais e nas representações sociais do nosso cotidiano presente. Ainda que nos centros urbanos e embora já se distanciando de seu caráter primitivo, o folclore faz parte das mudanças sociais quando surge resignificado pelas novas manifestações culturais.   Florestan Fernandes (1979) nos diz que:



  (...) as manifestações folclóricas podem ser sobrevivências de um passado mais ou menos remoto. Nem por isso elas devem ser concebidas como algo universalmente vazio de interesses ou de utilidades para os seres humanos. Reciprocamente, as manifestações folclóricas podem inserir-se entre os elementos mais persistentes e visíveis de certas formas de atuação social.

Dessa maneira, Florestan Fernandes acreditava na possibilidade de se pensar o folclore a partir de sua significância cultural, como parte viva da memória de uma comunidade, de uma cidade, de um país. Essa parte da tradição cultural que, séculos depois, diante da massificação de uma cultura agora civilizada, ainda sobrevive frente às tantas mudanças urbanas. E o que interessa na análise sociológica de Florestan Fernandes é que essa tradição não apenas sobrevive, mas ela também toma parte nessa mudança social. Ela também se transmuta  Segundo o sociológo não bastaria ao pesquisador do folclore apenas buscar fósseis de culturas já adormecidas e catalogá-las em coletâneas ou antologias. Mais que isso, precisaria ele estar atento às dinâmicas dos elementos culturais encontrados nos diferentes grupos sociais que vivenciam, reinventando e re-significando o folclore a cada novo contexto.

As décadas de 20 e 30 foram de extrema importância no que concernia ao estudo e inserção de temas folclóricos na literatura brasileira. Muitos foram os que se aproximaram  dessa temática, como o escritor de histórias infantis Monteiro Lobato e os modernistas de 22, e entre eles, sem dúvida, com maior ênfase, o literato, musicista e folclorista Mário Andrade. E tanto Monteiro Lobato quanto Mário de Andrade, salvaguardando as diferenças intelectuais, mantiveram intensa correspondência sobre a questão do folclore com o etnógrafo e o folclorista  Luís da Câmara Cascudo, um dos grandes defensores do conceito de "literatura oral".

Podemos lembrar que ainda nos anos trinta tivemos trabalhos de grande expressão na literatura com "os romances políticos contemporâneos"  de José Américo de Almeida (A bagaceira - 1928), Rachel de Queiroz (O quinze - 1930), José Lins do Rego (Menino de engenho - 1932), Jorge Amado (Cacau - 1933)  e Graciliano Ramos (Caetés - 1933). 

Cada qual, à sua escrita e maneira, a busca por compor um retrato do povo brasileiro através de suas obras literárias ou personagens literários.    Nessas obras podemos também destacar a importância dos aspectos culturais que trazem à tona a formação da sociedade brasileira, do povo brasileiro. 

Mas coube à primeira geração modernista maior ênfase no tratamento dos estudos folclóricos, poetas e pintores, incluindo Oswald de Andrade, Tarcila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia e outros, mantiveram por anos a preocupação de uma relação proximal entre cultura erudita e cultura popular. Da arte feita "pelo povo e para o povo", poderíamos dizer que numa atitude intrínseca antropofágica elementos do folclore nacional foram sendo literalmente apropriados e integrados às obras artísticas de então. 

Entre os modernistas vale ressaltar a importância de Mário de Andrade ao propor essa confluência entre o popular e o erudito. O Macunaíma de Mário é tão fortemente constituído por  elementos folclóricos, que num dado momento, salta o herói do personagem literário se personificando na imagem carnavalizada e representativa de uma forma de "ser brasileiro" através de um "herói coletivo", um herói às avessas.

Macunaíma vira a ursa Maior. Nesse sentido, sua conduta desconhece os padrões de comportamento habituais - por ser herói mítico, mas principalmente por ser brasileiro e culturalmente híbrido.  (FERNANDES, 2003, p.177) Nosso herói que não tem "nenhum caráter" e que  desmistifica a identificação pela cultura elitizada dos heróis oficias - para ser num fato lúdico e transgressor Macunaíma na vida.  (...)  Para Florestan:

Mário de Andrade vai compondo lentamente o seu herói e ao mesmo tempo um compêndio de folclore - Macunaíma é uma introdução ao folclore brasileiro, a mais agradável que se poderia imaginar. Nele pode-se estudar a contribuição folclórica do branco, do negro, do índio, a função modificadora e criadora dos mestiços e dos imigrantes, as lentas, os contos, a paremiologia, as pegas, os acalantos, a escatologia, as práticas mágicas - da magia branca e da magia negra -, todo o folclore brasileiro, enfim, num corte horizontal de mestre. É um mosaico, uma síntese viva e uma biografia humanizada do folclore de nossa terra.  (Idem, p.178)



Atuante foi a presença humanizada de Mário de Andrade junto às análises das questões históricas e sociais brasileiras, enfatizando sempre a busca por dialogar com a temática da identidade nacional e da arte popular, arte que habita e hospeda  formas de fazer literatura, de fazer cultura, de fazer música, de fazer história etc.  Pegando de empréstimo as palavras de Cecília Meirelles (1976, p.90-92):

Foi essa riqueza humana (essa capacidade de compreender e sentir) que fez de Mário um poeta, um músico, um folclorista. Esse desejo de participação, esse entusiasmo de viver não uma, não a sua, mas inúmeras vidas, levaram-no até esse desdobramento do Macunaíma, tão misturadas ao Bem e ao Mal, tão entregue à experiência terrena e sem fim: "Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta...." Basta ler os seus livros para se sentir o gosto com que ele os escrevia: gosto bem diferente do de um simples escritor; gosto do homem interessado pelo que viveu, ou sentiu em redor de si, e desejou fixar com palavras. (...) Na sua coleta de folclore, não é apenas um especialista que vemos prestar ouvido à melodia, captar a cantiga de texto ingênuo: é Mário mergulhando na música, impregnando-se de música, transformando-se em música e transmitindo-se com aquela voz, prisioneiro daquele encantamento de caçador deslumbrado que, por um momento esquecido de seu ofício, põe-se a correr também ao ritmo das vidas que palpitam na floresta, e ele mesmo é toda a floresta.

E é pela capacidade humana de pensar e sentir que a arte, a ciência, a cultura, a política, a linguagem, a literatura - todo o conhecimento "controlado" e restrito a esfera da dominação, deveria estar "de fato" e não "de fala"  ao alcance de todos.  Pois os "grupos subalternos" podem transformar o que chamam de realidade através da prática e da reflexão de um conhecimento comunitário.  E são esses saberes democratizados que provêm de uma determinada concepção de mundo que podem tirá-los do isolamento, podem mobilizá-los, uni-los e  confortá-los nas angústias frente às incertezas e algures do mundo.   Não seria, neste caso, a linguagem entrecruzada por outros tantos conhecimentos, como os da literatura e do folclore, fundamental via de acesso à produção do conhecimento crítico?   

Creio que tanto Mário de Andrade quanto Florestan Fernandes buscaram compreender a arte folclórica como um elemento efetivo nos processos de mudança social na cidade de São Paulo e no Brasil. E isso aparece tanto nas análises sociológicas propostas por Florestan quanto nas contribuições não apenas literárias, mas de caráter curioso, investigativo desenvolvido por Mário de Andrade em vários de seus estudos sobre a arte folclórica.  E se pensarmos em paixão pelo saber e fazer, o folclore certamente esteve para Mario de Andrade assim como a sociologia esteve para Florestan Fernandes: "quase amor".

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Como referenciar: "Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore" em Só Pedagogia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2024. Consultado em 16/05/2024 às 19:26. Disponível na Internet em http://www.pedagogia.com.br/artigos/poeticadalinguagem/index.php?pagina=2