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Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore (página 5)

Partindo desse referencial metodológico e trabalhando com comunidades paulistanas, Florestan Fernandes enfoca e investiga o folclore como parte significativa de formação cultural e também como elemento de mudança social. Dessa fase, talvez o texto mais exemplificativo seja mesmo "As Trocinhas do Bom Retiro" (1979) , texto da fase inicial de formação universitária de Florestan Fernandes. Para Florestan (1979, p.161), esse pequeno trabalho representou uma passagem da iniciação didática para a iniciação  científica, e nas suas  palavras, ele lhe devia, em termos de aprendizagem, muito mais do que ficara devendo aos cursos freqüentados anteriormente.

Como bem disse Roger Bastide, no prefácio que faz a este significativo texto, "não se pode compreender a cultura, separando-a do grupo social que ela exprime". (1979, p.134)  Para Bastide, o folclore não era uma simples curiosidade ou um trabalho de erudição, mas sim ciência do homem, e sendo ciência do  homem não poderia portanto esquecer o homem e no caso da pesquisa com grupos infantis,  não poderia esquecer "a criança que brinca". (Idem, p. 154)

Na pesquisa com os grupos infantis, Florestan Fernandes elabora uma metodologia de observação que não se esgota numa única "realidade vista", mas que se amplia quando na  aproximação dessa realidade, abre um campo de distanciamento com o equilíbrio de quem tem o olhar do pesquisador e a lente da pesquisa. Despindo-se do excesso de expectativas lançadas a priori, desvela, de fato, o universo das brincadeiras infantis a partir do universo brincante das crianças, sem carregá-lo assim também de respostas prévias. Como pesquisador da cultura infantil era importante para ele que ao observar as brincadeiras das crianças, fossem levadas em conta as características próprias do mundo infantil. Pois afirmava existir uma cultura infantil  constituída por elementos culturais quase que exclusivamente das crianças. Esses caracterizados por uma natureza lúdica seriam elementos folclóricos, passados aos grupos infantis muito remotamente. (Idem, p.171)  Segundo ele, quase toda totalidade desses elementos provinham da cultura do adulto numa espécie mais de incorporação que de mimetismo, o que acabava por se constituir num processo de aceitação e continuidade no tempo. Mas Florestan ressaltou também que era possível encontrar "outros elementos" na cultura do grupo infantil, elementos provenientes da criação de um patrimônio cultural próprio.

Partindo dessa leitura de Florestan Fernandes, consigo acreditar ainda mais que as crianças tragam e guardem em si mesmas a herança de um velho mundo, um mistério lúdico qualquer que, ao ultrapassar a possibilidade do registro adulto, renasça somente nelas, feito semente do que houve de passado.  Cada criança seria então "um patrimônio histórico e cultural da humanidade", precisando dessa forma cada uma receber o zelo necessário para com o seu presente e futuro.

Para Florestan era a partir da junção dos elementos culturais, os aceitos da cultura do adulto e também os elementos elaborados pela própria cultura infantil, que as crianças, na interação com os aspectos culturais do adulto acrescentariam a essa interação, pensada aqui também como simulação do real, uma dinâmica muito singular, numa lógica pertencente apenas ao universo referencial do grupo infantil, que nas brincadeiras socializa  brinquedos e experiências. Então haveria sempre algo de novo nas brincadeiras infantis.  Aquilo que se repete continuamente, mas de forma sempre diferente. Florestan diz que, os folguedos, por exemplo, não seriam apenas a imitação do adulto por parte da criança, pois a criança não estaria copiando quem quer que seja em seus folguedos, mesmo porque estes pertenceriam ao patrimônio cultural do grupo e já estariam suficientemente despersonalizados, pela duração no tempo e pelas transmissões sucessivas. (FERNANDES, 1979, p.175)
 

Exemplo dado pelo pesquisador para confirmar a apropriação dos elementos da cultura do adulto, esta modificada pelos elementos referenciais da cultura infantil,  poderia ser encontrada nos folguedos "Papai e Mamãe" no qual

(...) a criança não imita o pai ou a mãe, mas executa as funções que lhes são atribuídas por sua posição e pelos seus papéis sociais, segundo a padronização da cultura ambiente. (Idem, Ibidem.)


Essa socialização da infância se dava num processo de educação informal dentro dos próprios grupos infantis nas interações cotidianas. Tratava-se então de uma  educação das crianças, entre as crianças e pelas crianças.(Idem, 176)  Assim o pesquisador e sociólogo Florestan Fernandes nos ajuda a pensar que a criança é um sujeito de memória, criatividade e intuição, um ser cognoscente, capaz de interpretar e compreender o mundo a partir de elementos elaborados por ela própria, brincando e reinventando interações e linguagens. É um sujeito criativo que traz nas suas brincadeiras cotidianas elementos do mundo adulto, resignificando-os a partir de uma cultura infantil.  Por isso se faz necessário valorizar a criança como sujeito criador de uma aprendizagem própria, capaz de discutir e construir novos "sentidos e significados"  na sua constante relação com o mundo e com os outros.

Quanto ao folclore infantil, Florestan chama a atenção para o fato desse ter sido pouco estudado, não sendo o processo de transmissão dos elementos da cultura infantil sequer analisado até aquele momento, década de 40, mesmo pelos mais dedicados estudiosos dos fatos lúdicos. Pois para Florestan, os fatos referentes ao folclore infantil consistiam, sobretudo nos "fatos lúdicos", caracterizando-se por isso duplamente: sendo recreativos e geralmente se restringindo ao círculo das crianças. (Idem, 190)

Como podemos notar, a pesquisa de Florestan Fernandes foi precursora em vários aspectos hoje amplamente difundidos e pesquisados sobre a infância, assim como o lúdico,  as brincadeiras, o brinquedo.  É esse princípio de reconhecimento de uma socialização da infância pela cultura infantil que também veio fortalecer as pesquisas que envolviam e hoje envolvem muitos processos e práticas educacionais relativas à infância, bem como veio também corroborar para com o respeito ampliado a essas questões e isso se deu pelo surgimento de novos olhares para as tantas peculiaridades do universo cultural infantil. Pois a criança é um sujeito de cultura inserido num contexto social assim como o adulto também o é. O encontro desses sujeitos no espaço físico e temporal da escola faz do lúdico, da brincadeira, do jogo, da linguagem e da cultura infantil, possibilidades de acesso a uma educação democrática e emancipatória.

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Como referenciar: "Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore" em Só Pedagogia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2025. Consultado em 13/10/2025 às 01:47. Disponível na Internet em http://www.pedagogia.com.br/artigos/poeticadalinguagem/index.php?pagina=4