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Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore (página 6)

  O discurso oral como processo de significação e a relação entre folclore e literatura na escola - Cala boca já morreu...

Meu boi urrou, abalou os vagabundos,
 Cururuca não agüenta
 as Mercês já foi ao fundo
 derribou uns bangalôs
 que abalou o meio mundo.
No mês de maio, quando amanhece
 a sereia canta e a onda do mar sobe desce.
 No mês de junho, quando anoitece,
 eu reúno a minha gente e o povo de longe já conhece.

(Toada maranhense)



Todo ano, no mês de junho, nas toadas de um folguedo de bumba-meu-boi como os dos bois brincados em São Luís do Maranhão, a conhecida e lenda de Pai José e Catirina é renovada continuamente pelo cantar e pelo contar. E cada versão dessa história traz em si novos elementos agregados pela inclusão de outras lendas, personagens míticos e históricos, como Dom Sebastião e Ana Jansen, ou ainda personagens locais: repentistas, compositores, cantadores, artesãos, poetas populares etc. E ainda que o bumba-meu-boi seja também brincado em outras regiões do país, como no Pará e na Amazônia, as crianças dos outros estados, como os do sul ou sudeste, certamente, não terão contato mais próximo com esse folguedo, a não ser pelas informações superficiais veiculadas na mídia ou ainda pelos textos explicativos dos livros didáticos. Dessa maneira, dado o distanciamento espacial e temporal, a literatura infantil torna-se hoje importante instrumento pedagógico de acesso a essa e outras artes populares, justamente por buscar levar em conta a linguagem e a cultura infantil, até mesmo porque há uma preocupação dos autores dessa literatura, principalmente os contemporâneos, com o universo de referências das crianças, buscando não estereotipar a arte popular.  Não podemos generalizar ou até mesmo encontrar um consenso entre os críticos, mas é possível encontrar autores infantis e ilustradores que tentam imprimir em seus textos e ilustrações as sutilezas e as delicadezas de uma magia que habitava as narrativas antes apenas orais.      

Quando pensamos na escolarização da literatura, devemos lembrar, que durante séculos a literatura foi apenas narrativa oral e a própria arte popular que provinha do discurso oral, como as trovas, as quadrinhas, as cantigas de roda, as adivinhações, todo esse folclore como o concebemos hoje teve também como base constitutiva a contação de histórias, causos, lendas. Assim, literatura oral e folclore foram sendo "transmitidos" e preservados pela repetição narrativa dos feitos e saberes dos povos considerados agrafos. Difícil dizer onde começa e termina o que é da literatura oral e o que é do folclore, dada as tantas similitudes desse berço inicial. Isso nos faz pensar na importante tarefa da ação narrativa dos primeiros grupos sociais. Pois era através da contação e permuta de suas experiências, atravessadas por trocas linguísticas e extra-linguisticas que se fazia a preservação da cultura oral, podendo ela depois ser registrada como parte da literatura ou do folclore ou ainda de ambos, se pensarmos no que de fato pertence ao campo da semiologia. Afinal era pela semiologia que se dava a força imagética do uso da linguagem que fornecia aos homens de então subsídios semióticos potenciais necessários à criação do que viria a ser escrito ou registro posterior. Segundo Walter Benjamin (1987, 205), sobre a comunidade dos ouvintes:  "contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história". Benjamin nos instiga a pensar na troca de experiências que havia no ato de lembrar e narrar dos povos antigos, povos que sabiam bem o que era contar, caçar e "colher" - essas palavras que pertencendo ao mesmo campo semântico da palavra ler, nos levam ao campo semântico das palavras fiar e tecer e nos desvelam do oral a escrita ou do tecido oral o registro do texto.

E assim como o folclore foi e é uma arte do povo para o povo e pelo povo, a literatura oral também o foi e é. E essas artes dialogadas criaram e criam, ainda que com tramas distintas, uma conjugação única entre oralidade e memória. Isso se comprova na persistência das narrativas que residem e ainda resistem ao esquecimento e à morte. Na cultura oral mexicana, se diz que uma pessoa morre três vezes: quando morre fisicamente, quando sepultam seu corpo e quando falam seu nome pela última vez.  Porque carecendo "ser" precisamos nos falar e falar e ouvir também nossos nomes, e assim carecemos também nos contar e contar das nossas histórias, forma primeira de preservação de uma dada inscrição de existência humana. 

Mas não é somente através da transposição do discurso oral para o discurso escrito, que conseguimos chegar à estrutura da língua, isso se faz também quando sempre, de alguma maneira, refletimos sobre a finalidade dos textos orais e escritos, suas variações e combinações, seus contextos lingüísticos. Segundo Bakhtin "a língua não é o reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das relações sociais estáveis dos falantes".(1986, p.147) A língua está em constante mutação. Por isso ainda não conseguiram trancafiá-la na  silabação e palavração sem sentido que insiste dizer que o índio (brasileiro) tem dente de elefante e que o coelho come repolho. A língua não como um ser acabado (ergon), mas como um devir permanente, viva (energeia), dinâmica e ideológica. Não se trata de um meio ou de um instrumento que serve para atingir fins exteriores a ele, mas de um organismo vivo,  funcionando em si para si. (Bakhtin, 1986, 183).         

A língua é nossa terra, é gaya, mas também é água, correnteza fluida que nasce continuamente da nossa potência criativa através da cultura oral.  O uso da língua nos fortalece, por isso sem o reconhecimento do que falamos e do que produzimos enquanto falantes, estaremos fadados à falta de território, pois sem uma identidade lingüística valorada, sendo ela singular e coletiva, podemos nos tornar passivos diante dos perversos processos de exclusão. Órfãos da nossa própria língua, submetidos às estruturas hegemônicas previamente estabelecidas nos tornamos alvos fáceis de discursos que fatalmente nos farão esquecer também a nossa própria história e a nossa própria natureza humana.  E citando Drummond, logo também esqueceremos a língua em que comíamos, em que pedíamos para ir lá fora, em que levávamos e dávamos pontapés, a língua, breve, entrecortada. 

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Como referenciar: "Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore" em Só Pedagogia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2025. Consultado em 13/10/2025 às 04:40. Disponível na Internet em http://www.pedagogia.com.br/artigos/poeticadalinguagem/index.php?pagina=5