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Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore (página 7)

    

Segundo a mitologia greco-romana o homem nasceria da terra e de suas águas aquecidas pelo sol. Dessa forma, toda sua natureza humana tornar-se-ia então co-participe dos elementos que, imbricados, constituiriam sua herança mítica.  E quando chegada fosse a hora da morte desse homem, a mãe terra ao reconhecê-lo de volta guardar-lhe-ia devotamente em seu seio. Por isso, nessa mitologia, quando se desconhecia a origem de um homem ou  até mesmo de um povo, a ele era dado o registro de "filho da terra".   A esse exemplo de "fundação" na mitologia greco-romana, poderemos agregar outros tantos de outras mitologias. "O mito é o nada que é tudo", disse Fernando Pessoa. Nós, humanos, criamos do nada os mitos e não apenas como método interpretativo para o que achávamos sem explicação. Mas os mitos surgem como uma espécie muita distinta de baluarte do conhecimento e da criação humana. Não teríamos chegado a qualquer conhecimento posteriormente sistematizado se antes, na sua forma "germinante", não surgisse ele próprio do mesmo material inventivo e simbólico que também fomentava a criação de mitos em tempos arcaicos: a curiosidade, a intuição e o nada que é tudo.  Afinal, não nasce o pensamento cientifico do mesmo princípio de ousadia investigativa com as quais os homens primitivos buscavam responder as primeiras perguntas de busca por uma experiência fundadora: De onde viemos? Pra onde vamos? Qual é a nossa origem?   O surgimento do mundo das respostas não afastou o homem do desejo instintivo do mundo das perguntas e das descobertas. Assim como a escrita não levou por terra o potencial imagético e simbólico da oralidade.

A mitologia surgiu inicialmente pela tradição oral e permaneceu nela até que surgisse o primeiro escriba. Com o advento da escrita, esse campo do conhecimento deixa de ter o caráter único de guardião das histórias orais, sendo "elevado" ao patamar de literatura universal. Primeiramente, protegida auspiciosamente pelos monges em soturnas bibliotecas da idade média, tornava-se enquanto literatura, privilégio de poucos.  E se a humanidade caminhou a passos rápidos para os tempos modernos, o que dizer da literatura antes oral e compartilhada nos passeios públicos entre toda gente, ficando  detida a partir de então aos domínios bem delimitados e fronteiriços de uma classe elitista e privilegiada,  tornando-se quase uma prisioneira das ilhas civilizatórias da escrita. Isso sem dúvida se evidencia com o surgimento dos primeiros romances.  A literatura oral, assim como as prosas e as trocas comunitárias vão perdendo as ruas, as praças, os centros públicos das cidades. E por sua vez os homens vão silenciando o que é arte no discurso oral.             

Numa fase anterior ao romance e até mesmo à escrita era o repetere de uma estória a sua única fonte de registro e há de se dizer que um registro sempre inédito, pois afinal a fala guardava em si um ímpeto de movimento inaugural que, quando não interditada, seguia uma fluidez enriquecedora. Daí o folclore e a literatura andarem confundidos no que concernia à cultura oral, como bem evidenciou Florestan Fernandes numa de suas crônicas  para o Folha da Manhã em 1945:

O folclorista foi dos últimos a tratar dos fatos folclóricos - lendas, tradições, mitos, superstições, crendices, técnicas de cozimento do barro, de modelação, formas de cultivo da terra, estilos típicos de vida etc. - e quando êle surgia no Século XIX tinha diante de si um trabalho de notação tão grande, que poderia iniciar o estudo do folclore indiretamente, nas grandes obras, começando na antiguidade clássica no teatro grego e em Homero, passando por Vergílio e Petrônio, até chegar a Gil Vicente, Cervantes, Mistral... O folclore confundia-se na literatura, embora não houvesse preocupação alguma em se fazer arte popular. É, aliás, uma sobrevivência dessa fase muito extensa a idéia de que o folclore constitui uma parte da literatura.


Pois eram principalmente aos narradores primitivos e anônimos que se conferiam o importante papel social de zelar pela cultura oral comunitária, de não deixar morrer a história de um grupo, uma família, de um povo. Como griôs  caçavam histórias e cantigas - presas da criação humana. Portanto, o mundo simbólico e semiológico da oralidade fazia parte da aprendizagem de mundo para esses povos  sem grafia, mas não sem simbologia ou semiologia. Esse processo de fruição entre oralidade e escrita foi vivido na cantiga trovadoresca, a poesia da era medieval feita para ser cantada por um trovador, ao som da lira. Lirismo compartilhado entre voz e música, cantiga e literatura.  

Vimos assim que a literatura tem na voz o seu primeiro meio de expressão e na escrita, tem por sua vez, enquanto registro, a garantia da permanência das sucessivas fases de uma tekné, de um artesanato textual contínuo que se perpetua através dos séculos laboriosamente renovado a cada leitura, a cada leitor.

Assim é que o suporte físico do papel tem contribuído para a "permanência da voz". Mas por outro lado, nem a representação  escrita nem a icônica conseguem  apreender por completo todos os recursos que do texto oral, bem como as suas sucessivas modulações. Quando usamos a nossa voz todo nosso corpo se movimenta e se expressa através dos nossos gestos, das nossas entonações, dos acentos peculiares, da forma como nos posicionamos em relação ao outro, falando e ouvindo.

A oralidade renova-se continuamente, podendo dar de empréstimo ao texto escrito, novas cores, novas perspectivas, abrindo novos caminhos aos narradores. E isso se dá nas manifestações da arte popular: nos folguedos, nas marujadas, nas pajelanças, nas ladainhas, toda uma cultura oral nascida na coletividade.  E essa expressão polifônica torna esse texto coletivo oral semanticamente denso e quanto à forma, representativo de uma diversidade fluída e multifacetada que se revela por meio das marcas dos seus produtores - os falantes, os artistas, os brincantes.

Minha voz, minha vida, meu segredo e minha revelação, minha luz escondida, minha bússola e minha desorientação...  Percebemos que a voz transmite muito mais que vocábulos, ela exprime nossos sentimentos e sentidos, nos caracterizando como sujeitos.   É através da voz que conhecemos o estado em que se encontra quem fala. Nela inserimos nossos desejos, emoções, crenças e desejos. E é também através da voz ou da sua falta que nos horrorizamos diante das injustiças.

Paulo Freire (1987), nos ensina que:

Existir, humanamente é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novos pronunciar. (p.78, grifo meu) 



Na escolarização da literatura infantil , ouvir e contar estórias é um importante passo para a descoberta da leitura com gosto e da escrita com gosto.  Pois quando narramos uma história para as crianças permitimos a elas e a nós mesmos a oportunidade da observação, da pesquisa com os sons e as letras, o  que se dá no contato com a palavra falada e ouvida, que difere da palavra lida e da palavra escrita. E ao lermos em voz alta, também mostramos às crianças que há diferenças entre o som da "fala" (fonema) e o som da "escrita" (grafema), entre os sons das letras.  A criança passa a refletir sobre a língua e sobre sua diversidade. 

A audição de histórias descortina o trinômio: "oralidade, leitura e escrita", desvelando o mundo "da linguagem verbal e não verbal, do processo interlocutivo no qual se instaura a construção de sentidos" (Geraldi, 1993, 10). As crianças começam a perceber que existem muitas possibilidades para os textos, aumentando assim seu repertório de "palavras-mundo". Aprendem que a voz também existe para levar leituras, histórias, dramatizações e emoções aos ouvintes e desse feito, aprendem e ensinam as palavras geradas e geradoras.

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Como referenciar: "Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore" em Só Pedagogia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2025. Consultado em 13/10/2025 às 07:07. Disponível na Internet em http://www.pedagogia.com.br/artigos/poeticadalinguagem/index.php?pagina=6