Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore (página 8)
Nos sentimos mais próximos quando há uma voz por perto, ativamos nossa fantasia, nosso imaginário. Pois existe e persiste no eco de nossas vozes o espírito dos avós, bisavós, dos professores, dos contadores de histórias, dos poetas, dos compositores, dos artistas populares. Inúmeras vozes que ao emudecerem falam e renascem através de nós.
Na educação das crianças, como também nos ensinou o mestre Paulo Freire, a leitura de mundo precede a leitura da escrita. Pois ao chegar à escola em fase pré-escolar, a criança ainda pode ser instigada a exercer sua cultura, sua linguagem, seja através de brincadeiras, jogos lúdicos, relatos do seu cotidiano. São muitas as brincadeiras folclóricas, as "rodas", os teatros de marionetes, as contações de histórias, as cantigas, as trovas, os versinhos, tudo isso num exercício contínuo de cognição e linguagem da fala e do corpo. Mas a continuidade dessas práticas escolares que trazem a brincadeira e a oralidade como práticas centrais de aprendizagem, ou até mesmo circundantes, continuam a perder espaço no cotidiano escolar quando pensamos na fase posterior - já no 1º ano ou alfabetização, o que se agrava ainda mais nos anos subseqüentes do ensino fundamental. Como se a oralidade, a brincadeira e o folclore fossem perdendo o "valor educativo" para dar lugar ao "sério". Para Florestan Fernandes (2003, p.65):
Sem dúvida, há diversão atrás das atividades folclóricas: mas há também uma mentalidade que se mantém, que se revigora e que orienta o comportamento ou as atitudes do homem. A criança ou o adulto, por seu intermédio, não só participam de um sistema de idéias, sentimentos e valores. Pensam e agem em função dele, quando as circunstâncias o exigem.
Ainda assim, privilegia-se a prática da escrita e dos "deveres" em detrimento das práticas folclóricas que envolvam o lúdico e a oralidade, sem que se leve mais em conta o fato da criança também construir aprendizagem a partir da sua própria cultura, da sua "fala", da sua "pesquisa" de mundo, amalgamando realidade e imaginação. É a partir do lúdico, da linguagem, da "fala" que é voz e corpo que a criança conhece e experimenta as descobertas do mundo, manipulando um universo de hipóteses, desvendando "o velho no novo". O professor não é o ponto final do desenvolvimento que os estudantes devem alcançar. Os estudantes não são uma frota de barcos tentando alcançar o professor, que já terminou e os espera na praia. O professor também é um dos barcos da frota. (1987, p.66.)
Sabemos que diferentes tipos de saberes convivem sob o mesmo teto do ambiente escolar, mas ainda assim é o modelo "escrito-escolarizado" que prevalece como único a ser seguido de forma normativa. Contar histórias parece ser uma perda tempo, retrocesso saudosista ou ainda conhecimento atrelado a um passado de colônia com suas práticas de dominação. E Monteiro Lobato (1957, p. 3) vai "fazendo escola" com as Histórias de tia Nastácia e Dona Benta:
- As negras velhas - disse Pedrinho - são sempre muito sabidas. Mamãe conta de uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas, uma de nome Esméria, que foi uma escrava de meu avô. Todas as noites ela sentava-se na varanda e desfiava histórias e mais histórias.
A linguagem que provém do povo nas histórias folclóricas - a linguagem que é fazimentos; que resiste viva ao silenciamento normativo da linguagem legitimada por um grupo seleto de donos do saber é a linguagem que emerge para nos fazer refletir sobre o contexto ideológico que limita e separa as modalidades dos discursos. Pois linguagem é conhecimento coletivo e assim deverá ser para que se mantenha livre, para que liberte e humanize pela oralidade e pela oratória, ou seja, nos seus mais diversos usos e contextos. Objetivo impossível de ser alcançado sem o exercício da compreensão dialógica entre os homens.
Essa oralidade que pertence a todos os falantes pode ser compartilhada como conhecimento a partir dos mais distintos contextos lingüísticos. Pois as palavras faladas se tornam imagens e as imagens retornam ao texto oral, acompanhadas de perto por nosso olhar atento, pousado ou na escritura do lido ou absorvida pela escuta atenta de quem ouve uma história. E, se por acaso, nos distraímos na leitura do texto escrito ou na audição do texto falado, o encanto meio que se quebra e então perdemos parte da magia. Neste caso, o silêncio de quem ouve é tão importante quanto a voz de quem fala. Saber ouvir é então saber participar da fala do outro, respeitando o encantamento de cada lugar. E são os dois juntos, falante e ouvinte, que perfazem a leitura e a escuta dialogadas.
Ainda sobre a cultura oral, há ainda uma passagem muito bonita num texto de Pierre Lévy (1993, 84): "Os três tempos do espírito: a oralidade primária, a escrita e a informática" em que ele fala da persistência da oralidade nas sociedades modernas:
Finalmente, a literatura, pela qual a oralidade primária desapareceu, hoje tem talvez como vocação paradoxal a de reencontrar a força ativa e a magia da palavra, essa eficiência que ela possuía quando as palavras ainda não eram pequenas etiquetas vazias sobre as coisas ou idéias, mas sim poderes ligados à tal presença, tal sopro... A literatura, tarefa de restituição da linguagem para além de seus usos prosaicos, trabalho da voz sob o texto, origem da palavra, de um grandioso falar desaparecido e, no entanto sempre presente quando os verbos surgem, brilham repentinamente como acontecimentos do mundo, emitidos por alguma potência imemorial e anônima.
Gostaria de incluir nesta passagem de Lévy além dos verbos, os personagens: os contadores de causos, de histórias - personificações da oralidade dentro da literatura, sobretudo na literatura infantil. Seguindo de perto os dizeres de Lévy e entrecruzando-os às palavras de Florestan Fernandes nesse desafio que é pensar as relações entre a literatura e o folclore nas práticas textuais, é que me propus compreender o tempo ido da tradição oral e o tempo volumoso das cheganças da cultura infantil, tempo atravessado por uma memória coletiva e mítica, tempo atravessado pela mudança que é também um construído cultural feito em palavras, pois a palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (Bakhtin, 86, 37).
O tempo urge e se faz ainda mais necessário desejar que a linguagem oral e o folclore entrem, enfim, pela porta da frente da escola, seja por via do cênico, do cômico, do trágico, do fantástico ou do lúdico. E fica também expresso o desejo de ver banido das práticas escolares o uso da escolarização "sem a experiência dos sentidos" e o desejo de não ver mais a leitura de textos literários apenas como "dever obrigatório", principalmente a leitura dos poemas e dos textos infantis, lidos a fim das argüições que castram e reduzem o texto à uma orquestração de sons a favor da guilhotina da palavra nossa de cada dia, palavra que só nos pede a entrega. Mas não há entrega ou escolha sem riscos. Por isso as crianças se lançam a descobrir a novidade do mundo arriscando-se: cutucando, virando de ponta à cabeça, olhando pelo avesso, tirando as camadas, tirando de esquadro, subvertendo a lógica do pré-estabelecido para reinventar o dito e o pensado do mundo com arte.
BIBLIOGRAFIA
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Internet
Artigos: http://www.almanaque.folha.uol.com.br/ (Acervo on line)
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